A sociedade empresarial XYZ solicitou pedido de recuperação judicial. O Estado X, identificando haver apenas uma multa ambiental em face da referida sociedade, inscreveu o débito em dívida ativa, tendo como infratores a sociedade XYZ e o seu fiador, responsável solidário, e resolveu ajuizar ação de execução fiscal em face de ambos para a cobrança da sanção em questão.
Posteriormente, ao elaborar o plano de recuperação, abrangendo três classes de credores, observou-se que, a despeito de duas classes, que formam maioria absoluta, serem favoráveis ao plano, a maioria simples da terceira classe foi desfavorável, motivo pelo qual o plano não foi aprovado.
O magistrado, por sua vez, analisando a situação narrada, determinou a aprovação do plano de recuperação judicial, seguindo o rito em sua plenitude. Em paralelo, o Juízo de Executivo Fiscal resolveu sobrestar o processo de execução fiscal, considerando que, por não se tratar de débito tributário, tal execução não poderia prosseguir em virtude do processamento e da aprovação do plano de recuperação judicial.
Após o ocorrido, por não cumprir o plano apresentado, o juiz responsável convolou a recuperação judicial em falência da sociedade XYZ. Diante disso, o Estado X resolveu habilitar seu crédito no rol de credores.
Em face do exposto, comente em que consiste o “Cram Down”, mencionando, também as (i)legalidades das situações narradas.
Resposta
A questão exige conhecimento sobre Direito Empresarial, notadamente o assunto de recuperação judicial/falência e as implicações em uma ação de execução fiscal.
Quanto à primeira pergunta, para que haja a aprovação do plano de recuperação judicial, este deverá ser aprovado por todas as classes de credores abrangedoras:
Lei 11.101/05 Art. 45. Nas deliberações sobre o plano de recuperação judicial, todas as classes de credores referidas no art. 41 desta Lei deverão aprovar a proposta.
§ 1º Em cada uma das classes referidas nos incisos II e III do art. 41 desta Lei, a proposta deverá ser aprovada por credores que representem mais da metade do valor total dos créditos presentes à assembleia e, cumulativamente, pela maioria simples dos credores presentes.
§ 2º Nas classes previstas nos incisos I e IV do art. 41 desta Lei, a proposta deverá ser aprovada pela maioria simples dos credores presentes, independentemente do valor de seu crédito.
§ 3º O credor não terá direito a voto e não será considerado para fins de verificação de quorum de deliberação se o plano de recuperação judicial não alterar o valor ou as condições originais de pagamento de seu crédito.
Art. 56-A. Até 5 (cinco) dias antes da data de realização da assembleia geral de credores convocada para deliberar sobre o plano, o devedor poderá comprovar a aprovação dos credores por meio de termo de adesão, observado o quórum previsto no art. 45 desta Lei, e requerer a sua homologação judicial.
Todavia, mesmo não obtendo a unanimidade de aprovação por classes de credores, se o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembleia, independentemente de classes, a aprovação de 3 (três) das classes de credores ou, caso haja somente 3 (três) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 2 (duas) das classes ou, caso haja somente 2 (duas) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas e na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores, poderá o juiz conceder a recuperação judicial com base no plano que não obteve a aprovação de todas as classes.
A doutrina denomina tal instituto de “cram down”, consistente na possibilidade de o magistrado aprovar o plano de recuperação judicial, mesmo havendo discordância por parte de determinada classe de credores, desde que sejam cumpridos os requisitos acima, previstos no art. 58, §1º, da Lei 11.101/05:
Lei 11.101/05 Art. 58. Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55 desta Lei ou tenha sido aprovado pela assembleia-geral de credores na forma dos arts. 45 ou 56-A desta Lei.
§ 1º O juiz poderá conceder a recuperação judicial com base em plano que não obteve aprovação na forma do art. 45 desta Lei, desde que, na mesma assembléia, tenha obtido, de forma cumulativa:
I – o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembléia, independentemente de classes;
II – a aprovação de 3 (três) das classes de credores ou, caso haja somente 3 (três) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 2 (duas) das classes ou, caso haja somente 2 (duas) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas, sempre nos termos do art. 45 desta Lei;
III – na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores, computados na forma dos §§ 1º e 2º do art. 45 desta Lei. § 2º A recuperação judicial somente poderá ser concedida com base no § 1º deste artigo se o plano não implicar tratamento diferenciado entre os credores da classe que o houver rejeitado.
§ 3º Da decisão que conceder a recuperação judicial serão intimados eletronicamente o Ministério Público e as Fazendas Públicas federal e de todos os Estados, Distrito Federal e Municípios em que o devedor tiver estabelecimento.
Quanto aos demais pontos do enunciado, o juiz da vara de execução fiscal não poderia suspender o referido processo.
Explica-se. Inicialmente, ressalte-se que a cobrança judicial relativa ao crédito tributário não se submete à recuperação judicial nem à falência:
CTN Art. 187. A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento.
Lei 6.830/80 (LEF) Art. 29 – A cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, concordata, liquidação, inventário ou arrolamento.
Todavia, na situação narrada, não se trata de crédito tributário, mas sim de um crédito fiscal não tributário (multa ambiental) objeto de inscrição em dívida ativa.
A LEF admite tal situação, já que a execução fiscal não se restringe a créditos tributários:
Lei 6.830/80 (LEF) Art. 2º – Constitui Dívida Ativa da Fazenda Pública aquela definida como tributária ou não tributária na Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, com as alterações posteriores, que estatui normas gerais de direito financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal.
§ 1º – Qualquer valor, cuja cobrança seja atribuída por lei às entidades de que trata o artigo 1º, será considerado Dívida Ativa da Fazenda Pública.
§ 2º – A Dívida Ativa da Fazenda Pública, compreendendo a tributária e a não tributária, abrange atualização monetária, juros e multa de mora e demais encargos previstos em lei ou contrato.
A dúvida é saber se o mesmo tratamento deve ser dado aos créditos fiscais não tributários. A resposta é positiva.
Isso porque a suspensão das execuções em decorrência do deferimento da recuperação judicial não se aplica às execuções fiscais, não se restringindo, assim, às de crédito tributário, mas sim a qualquer execução fiscal:
Lei 11.101/05 Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica:
II – suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência;
§ 7º-B. O disposto nos incisos I, II e III do caput deste artigo não se aplica às execuções fiscais, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do art. 69 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código.
Corroborando tal entendimento, o STJ proferiu o seguinte precedente:
RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. HABILITAÇÃO DE CRÉDITO. MULTA ADMINISTRATIVA. NATUREZA NÃO TRIBUTÁRIA. FAZENDA PÚBLICA. CONCURSO DE CREDORES. NÃO SUJEIÇÃO. INTERPRETAÇÃO CONJUGADA DE DISPOSIÇÕES DO CTN, LEI DE EXECUÇÃO FISCAL E LEI DE FALÊNCIA E RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS. INDISPONIBILIDADE DO INTERESSE PÚBLICO. PRETENSÃO RECURSAL NÃO ACOLHIDA.
1. Incidente de habilitação de crédito apresentado em 29/10/2014. Recurso especial interposto em 11/8/2020. Autos conclusos ao gabinete da Relatora em 11/3/2021.
2. O propósito recursal consiste em definir se o crédito concernente à multa administrativa aplicada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA submete-se aos efeitos da recuperação judicial da devedora.
3. O art. 187, caput, do Código Tributário Nacional exclui os créditos de natureza tributária dos efeitos da recuperação judicial do devedor, nada dispondo, contudo, acerca dos créditos de natureza não tributária.
4. A Lei 11.101/05, ao se referir a “execuções fiscais” (art. 6º, § 7º-B), está tratando do instrumento processual que o ordenamento jurídico disponibiliza aos respectivos titulares para cobrança dos créditos públicos, independentemente de sua natureza, conforme disposto no art. 2º, §§ 1º e 2º, da Lei 6.830/80.
5. Desse modo, se, por um lado, o art. 187 do CTN estabelece que os créditos tributários não se sujeitam ao processo de soerguimento – silenciando quanto aqueles de natureza não tributária -, por outro lado verifica-se que o próprio diploma recuperacional e falimentar não estabeleceu distinção entre a natureza dos créditos que deram ensejo ao ajuizamento do executivo fiscal para afastá-los dos efeitos do processo de soerguimento.
6. Ademais, a própria Lei 10.522/02 – que trata do parcelamento especial previsto no art. 68, caput, da LFRE – prevê, em seu art. 10-A, que tanto os créditos de natureza tributária quanto não tributária poderão ser liquidados de acordo com uma das modalidades ali estabelecidas, de modo que admitir a submissão destes ao plano de soerguimento equivaleria a chancelar a possibilidade de eventual cobrança em duplicidade.
7. Tampouco a Lei 6.830/80, em seus artigos 5º e 29, faz distinção entre créditos tributários e não tributários, estabelecendo apenas, em sentido amplo, que a “cobrança judicial da Dívida Ativa da Fazenda Pública não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, concordata, liquidação, inventário ou arrolamento”.
8. Esta Corte Superior, ao tratar de questões envolvendo a possibilidade ou não de continuidade da prática, em execuções fiscais, de atos expropriatórios em face da recuperanda, também não se preocupou em diferenciar a natureza do crédito em cobrança, denotando que tal distinção não apresenta relevância para fins de submissão (ou não) da dívida aos efeitos do processo de soerguimento.
9. Assim, em que pese a dicção aparentemente restritiva da norma do caput do art. 187 do CTN, a interpretação conjugada das demais disposições que regem a cobrança dos créditos da Fazenda Pública insertas na Lei de Execução Fiscal, bem como daquelas integrantes da própria Lei 11.101/05 e da Lei 10.522/02, autorizam a conclusão de que, para fins de não sujeição aos efeitos do plano de recuperação judicial, a natureza tributária ou não tributária do valor devido é irrelevante. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO.
(STJ – REsp: 1931633 GO 2020/0200214-3, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 03/08/2021, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 09/08/2021).
Como se não bastasse, a execução fiscal foi promovida em face da sociedade XYZ e de seu fiador responsável solidário.
Sendo assim, e conforme entendimento sumulado do Superior Tribunal de Justiça, a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória:
Súmula 581 STJ: A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória.
Ressalte-se que, a despeito de o plano de recuperação judicial implicar novação das dívidas, isso, por si só, não gera a extinção das garantias anteriormente estipuladas:
Lei 11.101/05 Art. 59. O plano de recuperação judicial implica novação dos créditos anteriores ao pedido, e obriga o devedor e todos os credores a ele sujeitos, sem prejuízo das garantias, observado o disposto no § 1º do art. 50 desta Lei.
DIREITO CIVIL E EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. HOMOLOGAÇÃO DO PLANO. NOVAÇÃO SUI GENERIS. EFEITOS SOBRE TERCEIROS COOBRIGADOS. EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO. DESCABIMENTO. MANUTENÇÃO DAS GARANTIAS. ARTS. 49, § 1º E 59, CAPUT, DA LEI N. 11.101/2005.
1. A novação prevista na lei civil é bem diversa daquela disciplinada na Lei n. 11.101/2005. Se a novação civil faz, como regra, extinguir as garantias da dívida, inclusive as reais prestadas por terceiros estranhos ao pacto (art. 364 do Código Civil), a novação decorrente do plano de recuperação traz como regra, ao reverso, a manutenção das garantias (art. 59, caput, da Lei n. 11.101/2005), sobretudo as reais, as quais só serão suprimidas ou substituídas “mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia”, por ocasião da alienação do bem gravado (art. 50, § 1º). Assim, o plano de recuperação judicial opera uma novação sui generis e sempre sujeita a uma condição resolutiva, que é o eventual descumprimento do que ficou acertado no plano (art. 61, § 2º, da Lei n. 11.101/2005).
2. Portanto, muito embora o plano de recuperação judicial opere novação das dívidas a ele submetidas, as garantias reais ou fidejussórias, de regra, são preservadas, circunstância que possibilita ao credor exercer seus direitos contra terceiros garantidores e impõe a manutenção das ações e execuções aforadas em face de fiadores, avalistas ou coobrigados em geral.
3. Deveras, não haveria lógica no sistema se a conservação dos direitos e privilégios dos credores contra coobrigados, fiadores e obrigados de regresso (art. 49, § 1º, da Lei n. 11.101/2005) dissesse respeito apenas ao interregno temporal que medeia o deferimento da recuperação e a aprovação do plano, cessando tais direitos após a concessão definitiva com a homologação judicial.
4. Recurso especial não provido.
(STJ – REsp: 1326888 RS 2012/0116271-2, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 08/04/2014, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/05/2014).
Logo, seja pelo fato de as execuções fiscais, sejam de natureza tributária ou não, não se submeterem à suspensão da recuperação judicial, seja porque a execução deve prosseguir em face dos garantidores, a conduta de sobrestar a execução fiscal em tela foi incorreta.
Por fim, já foi visto que, com o deferimento da recuperação judicial, ou com a abertura do processo falimentar, as execuções fiscais não serão suspensas.
Todavia, pode a Fazenda Pública, além de ajuizar a referida execução, habilitar o seu crédito na falência?
Apesar de vozes contrárias na doutrina e na jurisprudência, prevalece o entendimento no Superior Tribunal de Justiça de que essa dupla garantia (execução fiscal e habilitação de crédito na falência) é vedada.
Isso não impede, todavia, a escolha da Fazenda Pública por uma delas. Nesse sentido, o STJ decidiu que é possível a Fazenda Pública habilitar em processo de falência crédito tributário objeto de execução fiscal em curso, desde que não haja pedido de constrição de bens no feito executivo.
O ajuizamento de execução fiscal em momento anterior à decretação da quebra do devedor não enseja o reconhecimento da ausência de interesse processual do ente federado para pleitear a habilitação do crédito correspondente no processo de falência. (STJ. 3ª Turma. REsp 1.857.055-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 12/05/2020).
A tramitação da ação executiva fiscal não representa, por si só, uma garantia para o credor. Diante do pedido de habilitação do crédito na falência, não haverá obrigatoriedade de a Fazenda Pública renunciar a execução fiscal se, no processo executivo, não há constrição de bens.
Logo, é cabível a coexistência da habilitação de crédito na falência com a execução fiscal desprovida de garantia, desde que a Fazenda Pública se abstenha de requerer a constrição de bens em relação ao executado que também figure no polo passivo da ação falimentar. (STJ. 1ª Turma. REsp 1.831.186-SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. Acd. Min. Regina Helena Costa, julgado em 26/05/2020).
EMPRESARIAL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. FALÊNCIA. EXECUÇÃO FISCAL. SUSPENSÃO DO FEITO EXECUTIVO. HABILITAÇÃO DE CRÉDITO FISCAL. POSSIBILIDADE. AFASTAMENTO DO ÓBICE DA DÚPLICE GARANTIA E DA OCORRÊNCIA DE BIS IN IDEM, DIANTE DA INOCORRÊNCIA DE SOBREPOSIÇÃO DE FORMAS DE SATISFAÇÃO DO CRÉDITO PELO FISCO.
1. A Corte Especial do STJ definiu que compete à Segunda Seção processar e julgar os conflitos decorrentes do binômio execução fiscal e recuperação judicial/falência, nos termos do art. 9º, § 2º, inciso IX, do RISTJ. Precedentes.
2. Na falência, é vedado que o fisco utilize duas vias processuais para satisfação de seu crédito – a denominada garantia dúplice: a execução fiscal e a habilitação de crédito -, sob pena de bis in idem, ressalvada a possibilidade de discussão, no juízo da execução fiscal, sobre a existência, a exigibilidade e o valor do crédito, assim como de eventual prosseguimento da cobrança contra os corresponsáveis (LREF, art. 7º-A, § 4º, II). A suspensão da execução, a que alude a mesma regra (inciso V), afasta a dupla garantia, a sobreposição de formas de satisfação do crédito, permitindo a habilitação do crédito na falência.
3. A principal consequência relacionada à vedação da dúplice garantia está em trazer, seguindo os ditames constitucionais, eficiência ao processo de insolvência, evitando o prosseguimento de dispendiosas e inúteis execuções fiscais contra a massa falida, já que a existência de bens penhoráveis ou de numerários em nome da devedora serão, inevitavelmente, remetidos ao juízo da falência para, como dito, efetivar os rateios do produto da liquidação dos bens de acordo com a ordem legal de classificação dos créditos (LREF, arts. 83 e 84).
4. Na hipótese, cuida-se de pedido de habilitação de crédito realizado pelo fisco, em que houve, também, pleito de sobrestamento e arquivamento do feito executivo, apesar de não ter requerido a extinção desse feito. Assim, cabível o pedido de habilitação de crédito da Fazenda Pública, haja vista que efetivado o pedido de suspensão do feito da execução fiscal, nos exatos termos do atual § 4º, inciso V, do art. 7º-A da LREF, o que se mostra suficiente para afastar o óbice da dúplice garantia e, por conseguinte, da ocorrência de bis in idem.
5. Recurso especial provido.
(STJ – REsp: 1872153 SP 2020/0099307-8, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 09/11/2021, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 16/12/2021).
Confirmando tal entendimento, a Lei 11.101/05, com redação dada pela Lei 14.112/20, assim definiu:
Lei 11.101/05 Art. 7º-A. Na falência, após realizadas as intimações e publicado o edital, conforme previsto, respectivamente, no inciso XIII do caput e no § 1º do art. 99 desta Lei, o juiz instaurará, de ofício, para cada Fazenda Pública credora, incidente de classificação de crédito público e determinará a sua intimação eletrônica para que, no prazo de 30 (trinta) dias, apresente diretamente ao administrador judicial ou em juízo, a depender do momento processual, a relação completa de seus créditos inscritos em dívida ativa, acompanhada dos cálculos, da classificação e das informações sobre a situação atual. § 4º Com relação à aplicação do disposto neste artigo, serão observadas as seguintes disposições:
V – as execuções fiscais permanecerão suspensas até o encerramento da falência, sem prejuízo da possibilidade de prosseguimento contra os corresponsáveis;
Portanto, a conclusão deveria ser no sentido da possibilidade de habilitação do crédito na falência, desde que não haja pedido de constrição de bens no feito executivo e que ocorra a suspensão da execução fiscal em face do falido.
Isso, por si só, não impede o prosseguimento do processo executivo contra o corresponsável.
Detonando na Discursiva 24 de janeiro
A sociedade empresarial XYZ solicitou pedido de recuperação judicial. O Estado X, identificando haver apenas uma multa ambiental em face da referida sociedade, inscreveu o débito em dívida ativa, tendo como infratores a sociedade XYZ e o seu fiador, responsável solidário, e resolveu ajuizar ação de execução fiscal em face de ambos para a cobrança da sanção em questão.
Posteriormente, ao elaborar o plano de recuperação, abrangendo três classes de credores, observou-se que, a despeito de duas classes, que formam maioria absoluta, serem favoráveis ao plano, a maioria simples da terceira classe foi desfavorável, motivo pelo qual o plano não foi aprovado.
O magistrado, por sua vez, analisando a situação narrada, determinou a aprovação do plano de recuperação judicial, seguindo o rito em sua plenitude. Em paralelo, o Juízo de Executivo Fiscal resolveu sobrestar o processo de execução fiscal, considerando que, por não se tratar de débito tributário, tal execução não poderia prosseguir em virtude do processamento e da aprovação do plano de recuperação judicial.
Após o ocorrido, por não cumprir o plano apresentado, o juiz responsável convolou a recuperação judicial em falência da sociedade XYZ. Diante disso, o Estado X resolveu habilitar seu crédito no rol de credores.
Em face do exposto, comente em que consiste o “Cram Down”, mencionando, também as (i)legalidades das situações narradas.
Resposta
A questão exige conhecimento sobre Direito Empresarial, notadamente o assunto de recuperação judicial/falência e as implicações em uma ação de execução fiscal.
Quanto à primeira pergunta, para que haja a aprovação do plano de recuperação judicial, este deverá ser aprovado por todas as classes de credores abrangedoras:
Todavia, mesmo não obtendo a unanimidade de aprovação por classes de credores, se o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembleia, independentemente de classes, a aprovação de 3 (três) das classes de credores ou, caso haja somente 3 (três) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 2 (duas) das classes ou, caso haja somente 2 (duas) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas e na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores, poderá o juiz conceder a recuperação judicial com base no plano que não obteve a aprovação de todas as classes.
A doutrina denomina tal instituto de “cram down”, consistente na possibilidade de o magistrado aprovar o plano de recuperação judicial, mesmo havendo discordância por parte de determinada classe de credores, desde que sejam cumpridos os requisitos acima, previstos no art. 58, §1º, da Lei 11.101/05:
Lei 11.101/05 Art. 58. Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55 desta Lei ou tenha sido aprovado pela assembleia-geral de credores na forma dos arts. 45 ou 56-A desta Lei.
Quanto aos demais pontos do enunciado, o juiz da vara de execução fiscal não poderia suspender o referido processo.
Explica-se. Inicialmente, ressalte-se que a cobrança judicial relativa ao crédito tributário não se submete à recuperação judicial nem à falência:
Todavia, na situação narrada, não se trata de crédito tributário, mas sim de um crédito fiscal não tributário (multa ambiental) objeto de inscrição em dívida ativa.
A LEF admite tal situação, já que a execução fiscal não se restringe a créditos tributários:
A dúvida é saber se o mesmo tratamento deve ser dado aos créditos fiscais não tributários. A resposta é positiva.
Isso porque a suspensão das execuções em decorrência do deferimento da recuperação judicial não se aplica às execuções fiscais, não se restringindo, assim, às de crédito tributário, mas sim a qualquer execução fiscal:
Corroborando tal entendimento, o STJ proferiu o seguinte precedente:
Como se não bastasse, a execução fiscal foi promovida em face da sociedade XYZ e de seu fiador responsável solidário.
Sendo assim, e conforme entendimento sumulado do Superior Tribunal de Justiça, a recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória:
Súmula 581 STJ: A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória.
Ressalte-se que, a despeito de o plano de recuperação judicial implicar novação das dívidas, isso, por si só, não gera a extinção das garantias anteriormente estipuladas:
Logo, seja pelo fato de as execuções fiscais, sejam de natureza tributária ou não, não se submeterem à suspensão da recuperação judicial, seja porque a execução deve prosseguir em face dos garantidores, a conduta de sobrestar a execução fiscal em tela foi incorreta.
Por fim, já foi visto que, com o deferimento da recuperação judicial, ou com a abertura do processo falimentar, as execuções fiscais não serão suspensas.
Todavia, pode a Fazenda Pública, além de ajuizar a referida execução, habilitar o seu crédito na falência?
Apesar de vozes contrárias na doutrina e na jurisprudência, prevalece o entendimento no Superior Tribunal de Justiça de que essa dupla garantia (execução fiscal e habilitação de crédito na falência) é vedada.
Isso não impede, todavia, a escolha da Fazenda Pública por uma delas. Nesse sentido, o STJ decidiu que é possível a Fazenda Pública habilitar em processo de falência crédito tributário objeto de execução fiscal em curso, desde que não haja pedido de constrição de bens no feito executivo.
O ajuizamento de execução fiscal em momento anterior à decretação da quebra do devedor não enseja o reconhecimento da ausência de interesse processual do ente federado para pleitear a habilitação do crédito correspondente no processo de falência. (STJ. 3ª Turma. REsp 1.857.055-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 12/05/2020).
A tramitação da ação executiva fiscal não representa, por si só, uma garantia para o credor. Diante do pedido de habilitação do crédito na falência, não haverá obrigatoriedade de a Fazenda Pública renunciar a execução fiscal se, no processo executivo, não há constrição de bens.
Logo, é cabível a coexistência da habilitação de crédito na falência com a execução fiscal desprovida de garantia, desde que a Fazenda Pública se abstenha de requerer a constrição de bens em relação ao executado que também figure no polo passivo da ação falimentar. (STJ. 1ª Turma. REsp 1.831.186-SP, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. Acd. Min. Regina Helena Costa, julgado em 26/05/2020).
Confirmando tal entendimento, a Lei 11.101/05, com redação dada pela Lei 14.112/20, assim definiu:
Portanto, a conclusão deveria ser no sentido da possibilidade de habilitação do crédito na falência, desde que não haja pedido de constrição de bens no feito executivo e que ocorra a suspensão da execução fiscal em face do falido.
Isso, por si só, não impede o prosseguimento do processo executivo contra o corresponsável.
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