Analise as seguintes situações:
a) José, após proceder a vistoria completa do seu veículo no Departamento de Trânsito do Estado A, conseguiu o respectivo licenciamento que apontava a sua regularidade. Todavia, no caminho de retorno para o seu domicílio, foi surpreendido por uma “blitz” promovida pelo próprio Departamento de Trânsito do respectivo ente, e sofreu uma aplicação de multa porque determinada peça do veículo estava severamente danificada;
b) Diante de decisão judicial transitada em julgado, decorrente de processo judicial exitoso, tendo como parte autora Maria, em face do Estado Y. Maria, apesar de não possuir impedimentos legais para tanto, aguarda anos para efetivar o cumprimento de sentença, tendo em vista que a multa diária e os juros moratórios aplicados contra a Fazenda Pública são muito vantajosos economicamente;
c) João, contratado pelo Estado Z para realizar determinado serviço, ciente da desorganização estadual acerca da ausência de documentação comprobatória de que o serviço foi ou não prestado, promove ação de cobrança em face do referido ente estadual exigindo tais valores, mesmo não tendo executado o serviço;
d) Estado A, locatário de imóvel no qual funciona a Secretaria de Administração do respectivo ente, depois de quatro anos de vigência do contrato recebe carta de cobrança do locador exigindo juros moratórios e multa dos aluguéis pretéritos porque o lugar de adimplemento da obrigação está ocorrendo em local diverso do previsto no contrato, a despeito de os recibos locativos mensais serem firmados sem ressalvas.
Levando em consideração a análise da Eticidade, indique as funções da boa-fé objetiva na regulamentação das relações jurídicas, e defina em quais das situações acima é possível identificar algum dos seus desdobramentos/funções reativas, informando exatamente quais conceitos parcelares estão previstos.
Resposta
A questão exige conhecimento sobre o conceito de boa-fé objetiva e os seus desdobramentos, conforme a doutrina mais especializada.
Na própria exposição de motivos do Código Civil, a doutrina vem se preocupando com o princípio da Eticidade, consistente na valorização da ética e da boa-fé, notadamente a objetiva, no sentido de evitar determinados comportamentos, independentemente da intenção do agente, levando em consideração os ditames da função social. Por sua vez, a doutrina majoritária indica três funções da boa-fé objetiva:
a) Interpretativa: Função de interpretar os negócios jurídicos como um todo (art. 113, do CC/02);
b) Controle: A fim de verificar eventual abusividade das condutas (art. 187, do CC/02); e
c) Integração: Em todas as fases de um negócio jurídico, a boa-fé deve ser preservada (art. 422, do CC/02).
Código Civil Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. § 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que:
III – corresponder à boa-fé;
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Apesar de vozes contrárias na doutrina, e tomando por base o princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado, os Tribunais Superiores, há muito tempo, vêm exigindo o cumprimento da boa-fé por parte também do Poder Público. Veja:
LOTEAMENTO. MUNICIPIO. PRETENSÃO DE ANULAÇÃO DO CONTRATO. BOA-FE.ATOS PROPRIOS. TENDO O MUNICIPIO CELEBRADO CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA EVENDA DE LOTE LOCALIZADO EM IMOVEL DE SUA PROPRIEDADE, DESCABE OPEDIDO DE ANULAÇÃO DOS ATOS, SE POSSIVEL A REGULARIZAÇÃO DOLOTEAMENTO QUE ELE MESMO ESTA PROMOVENDO. ART. 40 DA LEI 6.766/79. A TEORIA DOS ATOS PROPRIOS IMPEDE QUE A ADMINISTRAÇÃO PUBLICA RETORNE SOBRE OS PROPRIOS PASSOS, PREJUDICANDO OS TERCEIROS QUECONFIARAM NA REGULARIDADE DE SEU PROCEDIMENTO.RECURSO NÃO CONHECIDO.
(STJ – REsp: 141879 SP 1997/0052388-8, Relator: Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, Data de Julgamento: 17/03/1998, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 22/06/1998 p. 90).
Sendo assim, espera-se da Administração Pública, quer nas relações firmadas com os administrados, quer nas relações firmadas com seus próprios servidores, a adoção de condutas razoáveis, sem violação aos preceitos da boa-fé objetiva.
Tal comportamento também deve ser exigido de quem trata com o Poder Público.
Logo, quando se fala em funções reativas, ou desdobramentos, ou figuras parcelares da boa fé, nada mais são do que uma decorrência da aplicação da própria boa-fé.
Ou seja, a boa-fé objetiva atua em uma relação de forma reativa, reagindo a um determinado comportamento.
Os principais desdobramentos se encontram em cada uma das situações narradas no enunciado.
Vejamos.
a) Comportamento Contraditório/ “Nemo Venire Contra Factum Proprium”: Não é razoável que uma pessoa pratique determinado ato, mas que, posteriormente, realize uma conduta oposta, já que se criou uma confiança na primeira relação, não podendo ser desfeita, sob pena de violação à boa-fé.
A doutrina especializada, principalmente a do ilustre Anderson Schreiber, prevê a necessidade dos seguintes pressupostos para ensejar o comportamento contraditório:
1º: uma conduta inicial (factum propriu); 2º: a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desta conduta; 3º um comportamento contraditório com este sentido objetivo; 4º: um dano, ou pelo menos um potencial dano a partir da contradição.
Na primeira situação narrada, verificou-se:
1º Uma conduta inicial realizando a vistoria e concedendo a licença do veículo;
2º Com base nisso, criou-se a legítima confiança de que o administrado está de acordo com as regras de trânsito;
3º O próprio Departamento de Trânsito promoveu um ato contrário, identificando irregularidades no veículo;
4º A multa gerou um dano ao administrado. Portanto, deveria o candidato alegar o comportamento contraditório do ente público no primeiro momento.
b) Duty to Mitigate the Loss: É o dever de ambas as partes de mitigar as perdas. Logo, a parte a que a perda aproveita não pode permanecer deliberadamente inerte diante do dano, ainda que se beneficie de tal conduta.
Na situação 2, restou comprovado que a parte exequente apenas não ingressou com o cumprimento de sentença porque buscará recolher valores a título de juros e de astreintes, não exercendo o seu dever de mitigar as perdas.
Sendo assim, é possível o enquadramento da violação à boa-fé objetiva nessa hipótese.
AGRAVO INTERNO. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. MULTA DIÁRIA. PRECLUSÃO E COISA JULGADA. NÃO OCORRÊNCIA. RECURSO ESPECIAL REPETITIVO 1.333.988/SP. PARÂMETRO DE FIXAÇÃO. ANÁLISE PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. 1. A decisão recorrida foi publicada antes da entrada em vigor da Lei 13.105 de 2015, estando o recurso sujeito aos requisitos de admissibilidade do Código de Processo Civil de 1973, conforme Enunciado Administrativo 2/2016 desta Corte. 2. “A decisão que comina astreintes não preclui, não fazendo tampouco coisa julgada” ( REsp 1.333.988/SP, Relator Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 9.4.2014, DJe de 11.4.2014). 3. Cabe às instâncias ordinárias analisar, em cada caso concreto, o valor da obrigação e importância do bem jurídico tutelado; o tempo para cumprimento (prazo razoável e periodicidade); a capacidade econômica e de resistência do devedor; e a possibilidade de adoção de outros meios pelo magistrado e dever do credor de mitigar o próprio prejuízo (duty to mitigate de loss).
Precedente: (AgInt. no AgRg. no AREsp. 738.682/RJ, Relatora Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Relator p/ Acórdão Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 17.11.2016, DJe 14.12.2016). 4. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ – AgInt no AREsp: 882327 MG 2016/0062807-8, Relator: Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Julgamento: 09/05/2017, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 16/05/2017)
c) Exceptio Doli: visa sancionar condutas em que o exercício do direito tenha sido realizado com o intuito, não de preservar legítimos interesses, mas, sim, de prejudicar parte contrária.
Ou seja, a parte atua para prejudicar outra. Também pode ser conceituada como a defesa do réu contra ações dolosas, contrárias à boa-fé.
No caso em tela, e levando em consideração os ensinamentos de Flávio Tartuce, uma das aplicações de tal instituto é justamente quando da alegação da exceção do contrato não cumprido:
Código Civil Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro.
Portanto, no caso da situação 3, como o contratante sequer realizou o serviço, verifica-se a existência de um processo apenas para prejudicar a Fazenda Pública, não cabendo o pagamento no caso, sob pena, inclusive, de enriquecimento sem causa.
d) Supressio e Surrectio: A supressio decorre do não exercício de determinado direito, por seu titular, no curso da relação contratual, gerando para a outra parte, em virtude do princípio da boa-fé objetiva, a legítima expectativa de que não mais se mostrava sujeito ao cumprimento da obrigação. Por sua vez, a surrectio é o outro lado da moeda, consistente no surgimento do direito decorrente da renúncia tácita da outra parte.
É o que ocorreu na situação 4. Isso porque, passados 4 anos de pagamento de aluguel em um lugar diverso do pactuado no contrato, a conduta do locador faz presumir ao locatário que isso foi aceito, ocorrendo a renúncia tácita do seu direito, não podendo, no futuro, exigir cobrança de juros e multa por conta disso, diante da surrectio adquirida pelo Poder Público na questão.
O próprio Código Civil protege o sujeito nesses casos:
Código Civil Art. 330. O pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato.
Dessa forma, eram esses os desdobramentos que deveriam ter sido realizados para a pontuação integral do enunciado.
Todavia, como o Direito não é uma ciência exata, caso o candidato venha a alegar outros desdobramentos da boa-fé, mas que haja uma pertinência temática, poderá ser pontuado na medida do possível.
Detonando na Discursiva 06 de dezembro
Analise as seguintes situações:
a) José, após proceder a vistoria completa do seu veículo no Departamento de Trânsito do Estado A, conseguiu o respectivo licenciamento que apontava a sua regularidade. Todavia, no caminho de retorno para o seu domicílio, foi surpreendido por uma “blitz” promovida pelo próprio Departamento de Trânsito do respectivo ente, e sofreu uma aplicação de multa porque determinada peça do veículo estava severamente danificada;
b) Diante de decisão judicial transitada em julgado, decorrente de processo judicial exitoso, tendo como parte autora Maria, em face do Estado Y. Maria, apesar de não possuir impedimentos legais para tanto, aguarda anos para efetivar o cumprimento de sentença, tendo em vista que a multa diária e os juros moratórios aplicados contra a Fazenda Pública são muito vantajosos economicamente;
c) João, contratado pelo Estado Z para realizar determinado serviço, ciente da desorganização estadual acerca da ausência de documentação comprobatória de que o serviço foi ou não prestado, promove ação de cobrança em face do referido ente estadual exigindo tais valores, mesmo não tendo executado o serviço;
d) Estado A, locatário de imóvel no qual funciona a Secretaria de Administração do respectivo ente, depois de quatro anos de vigência do contrato recebe carta de cobrança do locador exigindo juros moratórios e multa dos aluguéis pretéritos porque o lugar de adimplemento da obrigação está ocorrendo em local diverso do previsto no contrato, a despeito de os recibos locativos mensais serem firmados sem ressalvas.
Levando em consideração a análise da Eticidade, indique as funções da boa-fé objetiva na regulamentação das relações jurídicas, e defina em quais das situações acima é possível identificar algum dos seus desdobramentos/funções reativas, informando exatamente quais conceitos parcelares estão previstos.
Resposta
A questão exige conhecimento sobre o conceito de boa-fé objetiva e os seus desdobramentos, conforme a doutrina mais especializada.
Na própria exposição de motivos do Código Civil, a doutrina vem se preocupando com o princípio da Eticidade, consistente na valorização da ética e da boa-fé, notadamente a objetiva, no sentido de evitar determinados comportamentos, independentemente da intenção do agente, levando em consideração os ditames da função social. Por sua vez, a doutrina majoritária indica três funções da boa-fé objetiva:
a) Interpretativa: Função de interpretar os negócios jurídicos como um todo (art. 113, do CC/02);
b) Controle: A fim de verificar eventual abusividade das condutas (art. 187, do CC/02); e
c) Integração: Em todas as fases de um negócio jurídico, a boa-fé deve ser preservada (art. 422, do CC/02).
Apesar de vozes contrárias na doutrina, e tomando por base o princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Privado, os Tribunais Superiores, há muito tempo, vêm exigindo o cumprimento da boa-fé por parte também do Poder Público. Veja:
Sendo assim, espera-se da Administração Pública, quer nas relações firmadas com os administrados, quer nas relações firmadas com seus próprios servidores, a adoção de condutas razoáveis, sem violação aos preceitos da boa-fé objetiva.
Tal comportamento também deve ser exigido de quem trata com o Poder Público.
Logo, quando se fala em funções reativas, ou desdobramentos, ou figuras parcelares da boa fé, nada mais são do que uma decorrência da aplicação da própria boa-fé.
Ou seja, a boa-fé objetiva atua em uma relação de forma reativa, reagindo a um determinado comportamento.
Os principais desdobramentos se encontram em cada uma das situações narradas no enunciado.
Vejamos.
a) Comportamento Contraditório/ “Nemo Venire Contra Factum Proprium”: Não é razoável que uma pessoa pratique determinado ato, mas que, posteriormente, realize uma conduta oposta, já que se criou uma confiança na primeira relação, não podendo ser desfeita, sob pena de violação à boa-fé.
A doutrina especializada, principalmente a do ilustre Anderson Schreiber, prevê a necessidade dos seguintes pressupostos para ensejar o comportamento contraditório:
1º: uma conduta inicial (factum propriu); 2º: a legítima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desta conduta; 3º um comportamento contraditório com este sentido objetivo; 4º: um dano, ou pelo menos um potencial dano a partir da contradição.
Na primeira situação narrada, verificou-se:
1º Uma conduta inicial realizando a vistoria e concedendo a licença do veículo;
2º Com base nisso, criou-se a legítima confiança de que o administrado está de acordo com as regras de trânsito;
3º O próprio Departamento de Trânsito promoveu um ato contrário, identificando irregularidades no veículo;
4º A multa gerou um dano ao administrado. Portanto, deveria o candidato alegar o comportamento contraditório do ente público no primeiro momento.
b) Duty to Mitigate the Loss: É o dever de ambas as partes de mitigar as perdas. Logo, a parte a que a perda aproveita não pode permanecer deliberadamente inerte diante do dano, ainda que se beneficie de tal conduta.
Na situação 2, restou comprovado que a parte exequente apenas não ingressou com o cumprimento de sentença porque buscará recolher valores a título de juros e de astreintes, não exercendo o seu dever de mitigar as perdas.
Sendo assim, é possível o enquadramento da violação à boa-fé objetiva nessa hipótese.
c) Exceptio Doli: visa sancionar condutas em que o exercício do direito tenha sido realizado com o intuito, não de preservar legítimos interesses, mas, sim, de prejudicar parte contrária.
Ou seja, a parte atua para prejudicar outra. Também pode ser conceituada como a defesa do réu contra ações dolosas, contrárias à boa-fé.
No caso em tela, e levando em consideração os ensinamentos de Flávio Tartuce, uma das aplicações de tal instituto é justamente quando da alegação da exceção do contrato não cumprido:
Portanto, no caso da situação 3, como o contratante sequer realizou o serviço, verifica-se a existência de um processo apenas para prejudicar a Fazenda Pública, não cabendo o pagamento no caso, sob pena, inclusive, de enriquecimento sem causa.
d) Supressio e Surrectio: A supressio decorre do não exercício de determinado direito, por seu titular, no curso da relação contratual, gerando para a outra parte, em virtude do princípio da boa-fé objetiva, a legítima expectativa de que não mais se mostrava sujeito ao cumprimento da obrigação. Por sua vez, a surrectio é o outro lado da moeda, consistente no surgimento do direito decorrente da renúncia tácita da outra parte.
É o que ocorreu na situação 4. Isso porque, passados 4 anos de pagamento de aluguel em um lugar diverso do pactuado no contrato, a conduta do locador faz presumir ao locatário que isso foi aceito, ocorrendo a renúncia tácita do seu direito, não podendo, no futuro, exigir cobrança de juros e multa por conta disso, diante da surrectio adquirida pelo Poder Público na questão.
O próprio Código Civil protege o sujeito nesses casos:
Dessa forma, eram esses os desdobramentos que deveriam ter sido realizados para a pontuação integral do enunciado.
Todavia, como o Direito não é uma ciência exata, caso o candidato venha a alegar outros desdobramentos da boa-fé, mas que haja uma pertinência temática, poderá ser pontuado na medida do possível.
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